A cachaça, da lenda à sua história

Queridinha em todo o Brasil, não seria diferente no Vale do Paraíba Paulista, onde há existência de alambiques por quase todas as suas cidades, tornando não só um produto típico da tradição regional, como também de importante fator econômico e que desenham excelentes roteiros turísticos à alambiques artesanais como em Bananal, Natividade da Serra, Paraibuna, São Luiz do Paraitinga entre tantas outras.
Sobre a história da cachaça todos querem falar um pouco, mas o que se percebe é um grande número de textos sem fundamentação exalando um bafo de falsidade perceptível a quilômetros de distância. Desmascará-la é um serviço de utilidade pública, e não apenas em nome da etimologia. Muito dos textos há o apelo insidioso de uma visão do Brasil que tem raízes no velho paternalismo racista da casa grande diante da senzala.
Existe um texto facilmente encontrado nas páginas da internet em que divulga-se uma falsa história da cachaça e estes atribuem ao Museu do Homem do Nordeste, do Recife a origem da fonte.

Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo.
Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse.
Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou.
*O que fazer agora?*
A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor.
No dia seguinte, encontraram o melado azedo fermentado.
Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo.
*Resultado:* o 'azedo' do melado antigo era álcool que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente.
Era a cachaça já formada que pingava. Daí o nome *'PINGA'*.
Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores ardia muito, por isso deram o nome de *'ÁGUA-ARDENTE'*
Caindo em seus rostos escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar.
E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo.
*(História contada no Museu do Homem do Nordeste).*

Mas isso é mais uma farsa e boato cibernético, como já esclareceu num fórum internético, anos atrás, a coordenadora geral da instituição, Vânia Brayner: 


“Caros, sinto informar-lhes que esta história nunca foi contada pelo Museu do Homem do Nordeste, em nenhum de seus escritos, exposições ou qualquer documento do Museu. Nós, que fazemos o Museu do Homem do Nordeste, estamos numa verdadeira saga na internet tentando descobrir de onde saiu essa história… do Museu, tenham certeza, não foi”.


A aguardente (coisa e palavra) já existia quando se começou a fabricar cachaça no Brasil. A data precisa é incerta, mas, embora a destilação já fosse conhecida na antiguidade, pesquisas situam o início da destilação de álcool em torno do século XII. Se havia a aqua vitae, “água da vida”, como os alquimistas a chamavam, a palavra aguardente não ficava muito atrás: por mais que se aprecie a contribuição nacional a tal cultura, o fato é que seu surgimento deve tanto à cana-de-açúcar quanto a invenção da televisão deve a Roberto Marinho.
Portugueses, e outros povos, fabricavam, sim, aguardentes, mas jamais “cachaça”, o destilado do mosto fermentado do caldo, do melado, da rapadura ou do melaço da cana-de-açúcar (hoje, por lei, “cachaça” é apenas o destilado do mosto fermentado do caldo da cana-de-açúcar).



Bebida da espécie “destilado” e pertencente à categoria das “aguardentes”, a Cachaça foi inventada no Brasil entre 1533 e 1534 pelo colonizador Martim Afonso de Souza e seus quatro sócios (três lusos e um holandês), em plena Mata Atlântica, nos três primeiros engenhos de açúcar construídos pelos cinco no Brasil (as primeiras indústrias do País), em São Vicente (hoje o local pertence a Santos): Madre de Deus, Santo Antônio e São Jorge, este conhecido, também como "dos Erasmos" ou "do Governador", único do qual restam ruínas. Martim Afonso trouxe o primeiro alambique para a terra recém-descoberta, engenhoca utilizada na Península Ibérica desde o início da Idade Média, e destilou a cana, cujas primeiras mudas chegaram à nova terra pelas mãos de Gonçalo Coelho em 1502.
“Cachaça” e “garapa” são termos falados e escritos no Brasil, em várias acepções, desde o Século XVI, a partir das atividades dos primeiros engenhos e da invenção da bebida. A palavra “cachaça”, a nossa aguardente de cana-de-açúcar, não começa a circular apenas “até a terceira década do século XVII, quando surgem as primeiras notícias da aguardente da cana-de-açúcar destilada em alambiques”. Encontramos a palavra “cachaça” escrita designando a nossa aguardente de cana-de-açúcar, no início do século XVII nos Anais da Câmara de Salvador, Bahia. Antes disto, Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, registra uma “casa de cozer meles com muita fábrica” também na Bahia, onde se produzia açúcar, melado, rapadura e cachaça. Outrossim, aguardente de cana-de-açúcar só poderia ser destilada em alambiques e não por qualquer outro processo. Ademais, “agoa ardente”, “água ardente”, “aguardente” sempre foi dito e escrito desde o Descobrimento. “
Já a pinga, surgiu muito tempo depois, registrada pela primeira vez em 1813. A princípio tinha a acepção de “gole, trago” – por meio da ideia de algo que apenas se pinga no copo, em pequeno volume – e só depois, por extensão, virou sinônimo de cachaça.



 


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